O presente texto tem por escopo analisar o contexto em que ocorreu a conquista dos direitos políticos das mulheres no Brasil, destacando-se o período após a Constituição Federal de 1988, sobretudo no que se refere às políticas afirmativas implementadas com a finalidade de ampliar a representatividade feminina.
Em 1932, o Código Eleitoral criou a Justiça Eleitoral, instituiu o voto secreto e universal, autorizou expressamente o voto sem distinção de sexo, o que incluiu as mulheres no rol de eleitores. A Constituição de 1934 estabeleceu o alistamento e o voto obrigatórios para os homens e as mulheres, quando estas exerciam função pública remunerada.
O código eleitoral atual instituiu o voto obrigatório para homens e mulheres, independentemente de renda. Em 1988, a atual Constituição da República implementou o sufrágio universal, direto e secreto, obrigatório para os eleitores(as) alfabetizados(as) entre 18 e 70 anos, e facultativo para eleitores(as) entre 16 e 17 e maiores de 70 anos e analfabetos(as).
O processo constituinte que se instaurou no Brasil em 1988 abriu novas perspectivas de transformações estruturais e novos paradigmas para a sociedade, sobretudo no que se refere à incorporação de direitos fundamentais básicos ao texto constitucional (Paixão, 2018).
Nesse contexto, os direitos políticos inseridos no texto constitucional compreendem a capacidade eleitoral ativa e passiva, ou seja, o direito de votar (capacidade ativa) e de ser votado (capacidade passiva).
Em relação à participação feminina nos espaços de poder, os direitos políticos previstos originariamente no texto constitucional não foram suficientes para assegurar a efetiva participação das mulheres na política. Propõe-se, então, a utilização das chamadas ações afirmativas. Nesse sentido, Fortes (2019) define as ações afirmativas como políticas públicas de teor corretivo, idealizadas para preencher a lacuna entre a igualdade formal e a igualdade material.
Ações afirmativas de gênero: contexto legislativo e jurisprudencial
Seguindo tendência internacional, fruto da 4ª Conferência Mundial da Mulher ocorrida em Pequim, na China, a Lei 9.100/96, instituiu as cotas de gênero, determinando que os partidos ou coligações preenchessem 20% das vagas destinadas aos cargos das Câmaras Municipais por candidaturas de mulheres. Posteriormente, a Lei 9.504/97, no artigo 10, §3º, ainda em vigor, ampliou o percentual da cota de gênero para o mínimo de 30% e o máximo de 70% de candidaturas para cada sexo (gênero), nas eleições para o Poder Legislativo, em âmbito federal, estadual e municipal.
Em 2015, a Lei 13.165 estabeleceu percentuais mínimo e máximo de distribuição de recursos do Fundo Partidário para aplicação em campanhas eleitorais. Em 2017, foi sancionada a Lei 13.487, que instituiu o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), mas não apresentou qualquer disposição quanto ao percentual a ser distribuído por gênero.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou a ADI nº 5.617/2018 no Supremo Tribunal Federal, tendo sido julgada procedente a ação, no sentido de equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (artigo 10, §3º, da Lei 9.504/1997) à destinação mínima de 30%, para cada gênero, de recursos do Fundo Partidário, como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais. Esse entendimento foi normatizado pelo TSE, por meio da Resolução nº 23.607/2019 (artigo 19, parágrafo 3º).
Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou em sede da Consulta nº 60025218.2018 que os partidos políticos deveriam, a partir das eleições de 2018, reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para financiar as campanhas de candidatas no período eleitoral, bem como ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão.
Por sua vez, em 28 de junho de 2018 o TSE decidiu (Instrução N° 0604344-73.2017.6.00.0000) que os recursos destinados às candidaturas femininas só podem ser utilizados no interesse de suas próprias campanhas, a fim de impedir o desvirtuamento das cotas de gênero.
A Portaria nº 348/2021 do TSE deu publicidade aos enunciados aprovados na I Jornada de Direito Eleitoral. O Enunciado nº 18 trata sobre a aplicação obrigatória das cotas de gênero e de raça para a distribuição de recursos destinados ao financiamento de campanha para cargos majoritários e proporcionais, a fim de proporcionar maior transparência e equidade na distribuição dos recursos de campanha.
As ações afirmativas surgem como medidas reparadoras necessárias para recolocar os menos favorecidos na condição de cooperadores sociais, da qual foram excluídos ao longo da história (Fortes, 2019). Nesse sentido, Rawls (2008) entende que os princípios da justiça social devem ser aplicados às desigualdades supostamente inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade.
Ante a inexistência de previsão expressão no texto constitucional, coube à legislação infraconstitucional implementar a política de cotas de gênero para reserva de candidaturas. Todavia, o modelo inicial demonstrou-se insuficiente, sendo necessária a ampliação das cotas para a distribuição dos recursos de financiamento de campanha e de tempo de propaganda política em rádio e TV, o que foi realizado por meio de processo legislativo e construção jurisprudencial.
Segundo Margarete Coelho (2020, p. 159) o financiamento de candidaturas femininas constitui fator decisivo para o aumento da representação de mulheres na política, tendo em vista que o investimento financeiro possibilita a realização de tarefas essenciais para o sucesso de uma campanha, tais como contratação de pessoal de apoio, ampliação dos meios de comunicação para apresentação de propostas, bem como dos meios de publicidade e propaganda eleitoral.
Considerações finais
As discussões sobre participação feminina na política têm ganhado relevante destaque nos últimos tempos, em busca de uma sociedade mais justa e igualitária. Contudo, a representatividade feminina no exercício dos mandatos não reflete as estatísticas do eleitorado.
São muitos os empecilhos que as mulheres enfrentam para se lançar na política. Essa situação reflete uma questão de gênero e suas relações com o poder e demonstra que a desigualdade feminina tem seus efeitos de discriminação, adquirindo expressões concretas em todos os âmbitos, inclusive na política (Coelho, 2020).
É imprescindível, portanto, que os atores institucionais, à luz dos princípios constitucionais, promovam novas construções de sentidos por meio de relações não hierarquizadas, com a presença mais igualitária das mulheres, até que se chegue ao ponto em que as ações afirmativas se tornem desnecessárias, em razão da equidade entre os gêneros nos espaços de poder.
Ante o exposto, verifica-se que as cotas de gênero, aplicadas aos recursos do financiamento de campanha, implementadas em 2020, representam um avanço significativo, porém ainda não suficientes para equilibrar a balança da representatividade feminina no cenário político brasileiro. Dessa forma, as cotas para reserva de cadeiras podem representar um novo caminho na busca pela igualdade de gênero.
Referências bibliográficas
COELHO, M. de C. O teto de cristal da democracia brasileira: abuso de poder nas eleições e violência política contra mulheres. Belo Horizonte: Fórum, 2020.
FORTES, R. O. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: PUCRS, 2019. Disponível em <http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/8457>. Acesso em 30 maio 2021.
PAIXÃO, Cristiano. A construção do futuro: os 30 anos da Constituição de 1988. Humanidades, n. 62. 2018.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes – Selo Martins, 2008.
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